jornal da tarde
Todos podem entender e gostar de Matemática. Ele garante.
04 de Junho de 2000
Entrevista do prof. Ricieri concedida ao jornalista Marcos Bragato
Mas a Matemática pode tantas outras coisas, tantas quantas podemos descobrir, como a aplicação de seus conceitos em nosso cotidiano. É o que demonstra o físico-matemático Aguinaldo Prandini Ricieri, autor de vários livros de Matemática (Arqueologia Matemática é um deles), consultor de empresas (onde aplica Modelagem Matemática) e professor do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA).
Ricieri criou o Curso Prandiano, que é ministrado nos finais de semana no Anglo Vestibulares. Com um ensino nada ortodoxo, ele introduz legiões de alunos nas infinitas possibilidades do aprendizado da Matemática. O trabalho de Ricieri é o de desmistificar o temor e as barreiras intransponíveis que se têm perpetuado no ensino da disciplina.
Ele mesmo foi vítima desse mito. “Toda a minha formação foi arcaica. Sou muito grato ao Anglo. Quando cheguei aqui, em 1977, tinha horror de Matemática. Mas, quando encontrei um outro ensino, foi paixão à primeira vista. Se pensarmos nos milhares de alunos completamente desmotivados, isso tem efeito em cascata que afeta toda uma família. A nossa proposta é mostrar que Matemática é uma disciplina fantástica e que não foi feita para aterrorizar ninguém. Quando a criança reclama, a culpa não é dela, mas da escola que não está encontrando um caminho de fato para ensinar Matemática”, diz.
Em entrevista ao JT, ele fala da profissão de matemático, da aplicação da matéria na produção da indústria e da necessidade de conhecermos o passado para entendermos melhor como está construída a Matemática.
A Matemática – fórmulas, equações, trigonometria, teoria dos conjuntos, cálculo, entre tantas outras coisas–- continua espantando os alunos?
A Matemática não foi nem está sendo desenvolvida para espantar ninguém, muito menos para ser cobrada em provas. O que acontece, muitas vezes, são aulas desprovidas de um conteúdo que desperte interesse no aluno. Quando se ensina – aprendi no Anglo, na USP e no ITA –, é preciso observar o histórico do assunto, a aplicação no dia-a-dia e a interligação entre aquilo que se ensina e as outras áreas do saber. Matemática não é prosa, é poesia. Faz-se necessário percebê-la no que ela esconde em sua etimologia, na sua função prática e na relação com tudo o que conhecemos. A matemática é como qualquer outra linguagem, como a música, por exemplo.
O professor poderia ser mais claro?
Decifrar junto aos alunos documentos antigos, preservados nos museus, livra-nos de inúmeros equívocos, como é o caso da operação de radiciação. Ninguém pensa, um segundo que seja, no significado de três ser a raiz quadrada de nove. Em português, literalmente, raiz quadrada dá a entender uma árvore que tem a sua raiz em formato de quadrado. Pesquisando os originais em latim do século 15, encontramos a resposta para esse despropósito: radix quadratum 9 aequalis 3. Isto é, o lado (radix) do quadrado (quadratum) de área 9 é igual (aequalis) a 3. Entende-se melhor radix como lado. E logaritmo, matriz, integral, inequação, não teriam também uma explicação que se entenda?
E quanto à aplicação da Matemática?
Médicos curam, dentistas obturam, advogados defendem, agiotas emprestam dinheiro, prostitutas se vendem... E nós, físicos, engenheiros, matemáticos, administradores, fazemos o quê para sobreviver? Brigamos por um emprego que nos permita envelhecer rodeados de memorandos babacas que ninguém lê? E a Matemática não serve para nada? Pouquíssimos colegas conseguem, realmente, sobreviver fazendo uso daquilo que nos ensinaram nas escolas: equacionar e resolver problemas quantitativos. Quanto aos demais, lamentavelmente, povoam bancos, vendem carros, dirigem táxis, são donos de lanchonete, quando não são burocratas. Por que os profissionais das exatas não podem ser liberais, sem chefes, donos do próprio nariz e aplicar Matemática à vida das empresas como consultores? Seremos úteis à sociedade e a nós mesmos. Você imagina o que é preciso e quanto custa o projeto de um recipiente para iogurte que podemos fazer? Ou será que transferência de calor e cálculo variacional foram criados somente para os estudantes aprenderem e, após a formatura, esquecerem? É necessário semearmos o nosso conhecimento. Não seria interessante que as aulas de Matemática servissem na formulação de camisas, sapatos, jóias, ração animal, absorventes feminino? Coisas do dia-a-dia que, para serem finalizadas inteligentemente, carecem de um profissional das exatas e, especificamente, do seu aprendizado.
Essa aplicabilidade no cotidiano teria uma mesma origem? Estariam no seu próprio desenvolvimento enquanto disciplina as respostas do por que ela precisa manter a conexão com a cultura tecnológica?
A matemática surge nos primórdios, com os nossos irmãos das planícies da África Setentrional, que se arrastavam de quatro pelo chão. Ao se levantarem, riscaram uma parede. Aí está a origem da matemática. Esse ancestral começou a perceber que, quando uma entidade qualquer fez o mundo, utilizou-se de padrões geométricos muito bem definidos: no polegar do dedo, temos uma espiral. Essa mesma espiral pode ser encontrada na cabeça, nas constelações e no caramujo cortado ao meio. Encontramos figuras geométricas na natureza: o hexágono pode ser visto na carapaça da tartaruga ou no favo de mel, nas placas do tatu; o pentágono está na estrela-do-mar, nas flores e no corte transversal do mamão. A natureza foi geometrizada e isso foi percebido cedo. Toda a natureza foi criada exatamente em cima de um padrão geométrico muito bem definido. Diante desse fato, questionou-se a razão do criador ter utilizado esse princípio. Por que fazer o favo de mel hexagonal? Existe uma linguagem disseminada na natureza e cabe à matemática decodificá-la – daí o rótulo grego Mathesis. Com a Revolução Industrial, a produção em série de coisas artificiais não existentes na natureza, levantou-se a seguinte pergunta: se existisse um “pé-de-iogurte”, que frasco estaria na árvore? Será que essa possível embalagem desse frasco seria tão eficiente como a de um ovo?
Você mencionou que, quando se ensina, é necessário também ligar o assunto às outras áreas do conhecimento. Esse ponto da sua proposta coincide com a recente política educacional do MEC.
Acho louvável essa preocupação do governo. Como exemplo de interligação de áreas de ensino, podemos fazer um paralelo entre a Literatura e a Física-Matemática. Camões, nos Lusíadas (1597), quando narra a viagem épica de Vasco da Gama às Índias, escreveu “que não há coisa, a qual natural sendo, que não queira perpétuo o seu estado”. Sem dúvida, essa conclusão sobre o gênero humano é uma versão do Princípio da Inércia que Galileu (1638) registrou: “Todo o corpo em repouso ou em movimento uniforme tende a perpetuar o seu estado se nenhuma força atuar”. Nesses dois casos, não importou o objeto da análise, pois ambos concluíram a mesma lei observando fatos distintos. Galileu extraiu sua conclusão analisando racionalmente o comportamento cinemático de esferas rolando sobre planos inclinados, enquanto Camões concluiu seu pensamento observando o comportamento humano. Quando Descartes se preocupa com o acerto dos canhões comandados pelo príncipe Maurício de Nassau na Batalha de La Rochelle, vê-se diante de uma questão parecida com a de Shakespeare, meio século antes, na conduta terminal de Hamlet (1616). O soldado Descartes é inseguro, enquanto o personagem Hamlet é infeliz. Descartes não se conforma em ouvir a posição dos inimigos e não saber associar ao ângulo de tiro certeiro do canhão. O resultado é elementar: dezenas de colegas mortos. Hamlet não aceita o fato do seu pai, rei da Dinamarca, ter sido assassinado. Descartes, no Discurso do Método (1637), expressa o que sente através do “Cogito, ergo sum”, enquanto Shakespeare com “To be or not to be”. Cada qual ao seu modo – “penso, logo existo” e “ser ou não ser” – sintetizam a mesmíssima questão: o ato de entender é o que dá sentido às nossas vidas. Camões, Galileu, Descartes, Shakespeare e outros mostram-nos que, para descobrirmos, pouco importa se escrevemos ou calculamos. Basta, tão somente, termos sensibilidade, inspiração e dúvidas.
Tomando essa direção, podemos afirmar que o possível culpado pelo temor da Matemática é a maneira como é ensinada nas escolas?
O temor acontece por conta da freqüente finalidade do ensino: avaliação. Não adianta ensinar Matemática, ou seja lá o que for, dando exercícios e mais exercícios para que o aluno vá bem nas provas da escola.
Se acompanharmos nos últimos anos as estatísticas referentes às opções dos alunos pelas exatas, verificamos uma diminuição significativa de interesse pela área. Como o professor justificaria essa tendência?
É sabido que a boa interpretação de uma teoria está condicionada à proximidade cultural entre autor e usuário. Tempo houve na Matemática em que seu ensino dispensava a equipolência entre seus textos e o cotidiano do aprendiz, resultando, quase sempre, em um fracasso educacional resumido em alunos desmotivados e professores frustrados. Esse tipo de ensino, alicerçado em currículos retrógrados impostos por burocratas, engessou a criatividade do professor e arruinou as Exatas. Perdemos alunos para as outras áreas do conhecimento, que provavelmente se fizeram mais competentes em persuadi-los para seus quadros profissionais. Mas aí há um outro problema que compromete mortalmente o nosso ensino: salários aviltantes. A que ponto de insignificância está reduzida a educação no País! É inconcebível o salário de fome que se paga ao professor. Assim, nosso sistema educacional perde, dia após dia, grandes professores para a iniciativa privada e o resultado será, em breve, uma escola vazia de talentos, restando ao último que sair apagar a luz, aliás, a lousa!
Você propõe como base do ensino da Matemática a imersão na Arqueologia. Como isso acontece?
Vasculhar escavações no Iraque, pesquisar os acervos dos museus europeus ou iluminar paredes de cavernas na África têm contribuído para que os cientistas entendam os motivos de nossos ancestrais desenvolverem a Matemática. Esses indícios da racionalidade do homem ancestral esclarecem inúmeros equívocos. Por que os babilônicos de 2500 a.C. esculpiram contas em milhares de pedras? Estariam preocupados com o concurso para escriturário do Banco da Babilônia? E os egípcios não teriam tido motivos menos banais e hilariantes para fazer seus registros matemáticos em monumentos pesando toneladas? Praticar a arqueologia matemática nos vestígios das civilizações chinesa, inca, hindu, maia, asteca, helênica ajudou-nos a descobrir o principal quesito humano que conduz à Matemática: o homem é um ser gregário. Com a agricultura, os nossos ancestrais nômades tornaram-se sedentários, surgindo, naturalmente, a necessidade de organização entre eles. O crescimento do grupo exigiu um planejamento, rudimentar que fosse, da produção de suas terras como forma de antecipar a fartura ou a escassez de víveres. Aparecem, então, os conceitos não só de política, mas de governo, de Estado e de cidadania. Documentos em caracteres pictóricos, cuneiformes e hieróglifos demonstram ter existido, há milhares de anos, uma preocupação generalizada com a Matemática. Por meio de métodos originais de somar, dividir, subtrair, os profissionais de exatas mensuravam terras, distribuíam colheitas, cobravam impostos, compunham calendários, enfim, faziam-se úteis à sociedade.
Qual é a finalidade do Curso Prandiano de Matemática?
Ensinar matemática! Isto é, articular a mathesis que no grego significa aprender, decodificar a natureza (phýsis). Assim, espirais, catenárias, hélices, ciclóides, cardióides, pentágonos, hexágonos, elementos formadores do universo que nos envolve, constituem a matéria-prima que pode ser transformada, com saliva, suor e pó de giz assoprado, em produtos e idéias.
Produtos, em que sentido?
Camisas, sapatos, pipoca, jóias, absorventes, iogurtes, remédios, elementos do dia-a-dia que, para serem finalizados com inteligência (méthode), carecem de funções, logaritmos, matrizes, enfim, daquilo que as Exatas se encarregam de oferecer.
Mas o Curso Prandiano mostra onde está a Matemática?
Sim. A Matemática está no corte transversal de uma carambola, na forma da estrela-do-mar, nos produtos industrializados, nos escritórios de consultorias, nas fábricas, nos museus, nos papiros egípcios, nas pedras maias, nos centros de pesquisa, nas universidades, na espiral dos náutilos, no cacho de uva, no vôo de um pássaro, em nosso cérebro... e isso faz os alunos tomarem gosto pelas Exatas.